Naiara Martins estreia com “Terras do Sem-Fim” e apresenta um Brasil íntimo, ancestral e contundentemente contemporâneo

A cantora, compositora, escritora e pesquisadora Naiara Martins lançou no dia 20 de novembro o seu primeiro álbum, Terras do Sem-Fim, uma obra que chega ao mercado como um dos debuts mais densos e conceitualmente sólidos do ano. Produzido por Daniel Cahon e distribuído pela Quae, o trabalho reúne oito faixas entre inéditas e releituras, consolidando uma artista que transita com naturalidade entre tradição, modernidade e um forte senso de identidade cultural.


Com estética apurada, narrativa musical coerente e rigor técnico, o disco se destaca por apresentar uma visão singular de brasilidade, embasada não apenas na sonoridade, mas também em camadas de ancestralidade, memória e literatura — campos onde Naiara construiu trajetória reconhecida antes mesmo de assumir oficialmente seu lugar na música.

O nascimento de uma voz que sempre esteve lá

Embora tenha formação em canto lírico e cante desde a infância, Naiara Martins jamais imaginou que faria da música uma carreira. A relação com o canto era afetiva, íntima — um gesto de amor, não de profissão. O receio materno quanto aos desafios de uma vida artística também a afastou desse caminho por anos.

Tudo muda em 2019, quando a artista retoma as aulas de violão. O professor, que viria a se tornar produtor do álbum, encoraja suas primeiras apresentações em saraus. É nesse período que o disco começa a tomar forma, ainda sem a pretensão de se transformar em um projeto de grande porte.

A virada estética acontece durante uma viagem a Belém. De volta ao Rio de Janeiro, Naiara procura músicas que resgatassem a atmosfera vivida e encontra, na obra de Fred Martins, a canção “Terras do Sem-Fim” — que se torna o eixo conceitual do trabalho. A faixa, que conta com a participação especial do Cacique Raoni, reforça o compromisso do álbum com um Brasil profundo, espiritual e originário.

É um norte”, resume a artista, em referência ao papel da faixa dentro do universo simbólico do disco.

Releituras que se reinventam, inéditas que expandem caminhos

O repertório de Terras do Sem-Fim equilibra composições inéditas e versões que se distanciam das interpretações consagradas, reafirmando a busca de Naiara por uma assinatura vocal própria.

Entre as inéditas, destacam-se:

“Outra Cor” (Alejo Quiroga),
“Azul Concreto” (Alice Santiago),
“Mulher Malevich”, escrita pela própria Naiara em parceria com Yasmin Nigri e Daniel Cahon, faixa que revela sua potência como letrista.

    Já nas releituras, a artista assume riscos calculados — e bem-sucedidos. A abertura com “Negro Gato” (Getúlio Côrtes) traz uma interpretação marcada por personalidade, distanciando-se de qualquer tentativa de emular versões históricas. Em “Preciso Aprender a Ser Só” (Marcos e Paulo Sérgio Valle), o clássico ganha contornos sutis e contemporâneos, reforçando a delicadeza interpretativa de Naiara.

    Uma obra que pulsa ancestralidade, corpo e memória

    As oito faixas constroem um tecido sonoro que dialoga com as múltiplas formações da artista. O violão de raiz ibérica, o samba, a bossa nova, as percussões afro-indígenas e elementos rituais evocam não apenas referências musicais, mas a própria composição do corpo e da história de Naiara.

    O disco reflete essa mistura que está em mim”, afirma.
    Suas origens portuguesa, indígena e africana se traduzem nos arranjos, nas escolhas rítmicas e na forma como a artista se coloca enquanto narradora de si e do país.

    Entre a literatura e a música: a solidez de uma artista múltipla

    Antes de se lançar como cantora profissional, Naiara Martins construiu uma carreira respeitada no campo da pesquisa literária. Escritora, crítica e estudiosa, ela foi indicada ao Prêmio Jabuti de Filosofia em 2024 por sua análise sobre José Saramago e Montaigne — um feito que evidencia a profundidade intelectual que ecoa nas letras, no repertório escolhido e no modo como organiza o discurso estético do álbum.

    Em Terras do Sem-Fim, essa bagagem se materializa em forma e conteúdo: há poesia, rigor, reflexão e uma visão crítica sobre as camadas do Brasil, suas contradições e suas potências.

    Um álbum construído entre afetos, pandemia e colaboração

    O disco reúne um time de músicos renomados, como Gabriel Policarpo, Pedro Braga, Marcos Nimrichter, Vladimir Sosa, Wiliam Belle, Daniel Drago e o próprio Daniel Cahon. O processo de gravação, estendido entre 2019 e 2025, mescla registros domésticos realizados por Naiara durante a pandemia, sessões presenciais no Hi-Eight Studio e gravações remotas de músicos espalhados pelo país.

    Essa multiplicidade de processos reforça o caráter orgânico, híbrido e vivo do álbum.

    Uma estreia que aponta para um território próprio

    Mais do que um cartão de visita, Terras do Sem-Fim é uma obra de afirmação. Um disco que evidencia uma artista madura desde o primeiro passo, consciente de seus referenciais e segura de suas escolhas estéticas.

    Naiara Martins estreia como quem retorna — reconhecendo-se, reencontrando-se e reivindicando seu espaço em uma musicalidade que é, ao mesmo tempo, íntima, ancestral e contemporânea.

    Com este lançamento, a artista apresenta ao público um território sonoro próprio: vastíssimo, sensível e profundamente brasileiro.

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