Entrevista com Naiara Martins | Terras do Sem-Fim | Music On The Road

Na interseção entre palavra, som e ancestralidade, a cantora apresenta versão pocket de “Terras do Sem-Fim” na Audio Rebel. No palco, voz, memória e identidade se encontram em estado de escuta — e celebração.

A música sempre foi lugar de pertencimento para Naiara Martins. Filha da escuta atenta, neta de uma mulher que transformava o canto em gesto de afeto e resiliência, a artista leva ao palco, pela primeira vez, o repertório de seu aguardado álbum de estreia, “Terras do Sem-Fim”. O pocket show realizado na Audio Rebel, no Rio de Janeiro, apresentou uma amostra do que o público poderá ouvir no lançamento oficial, previsto para agosto.

Produzido por Daniel Cahon, o disco costura influências que atravessam a diversidade sonora brasileira: da bossa ao samba, passando pela força dos tambores da diáspora africana e das raízes indígenas. O resultado é um mosaico afetivo e político — uma leitura autoral de Brasil que recusa simplificações.

Na entrevista exclusiva ao Music On The Road, Naiara compartilha os bastidores da criação, fala sobre o impacto da pandemia no processo criativo e sobre como sua formação acadêmica e literária influencia sua relação com a música.

Music On The Road — O título do álbum, "Terras do Sem-Fim", é muito forte e remete a uma vastidão. O que essa expressão significa para você e como ela costura a pluralidade de sons do Brasil que você se propôs a explorar, da bossa à cabula? Que Brasil é esse que você nos apresenta?

É o Brasil que me constitui, um país mestiço, com toda a sua riqueza, potencialidade e suas dores. Também com um viés feminino, claro, porque sou mulher. Mas, falando em geral, fiz um desses testes de DNA. Tenho majoritariamente sangue de europeu, ou seja, do colonizador, mas também dos indígenas que resistiram e continuam em mim, e dos negros que sobreviveram aqui no meu corpo apesar de tudo. Tudo isso sou eu como mulher brasileira: tenho sangue de quem violentou e de quem sofreu. Tudo isso é Brasil, a maioria de nós é isso. E tem muitas questões aí. Não é possível dar conta disso totalmente em 8 ou 10 músicas, e não era minha intenção. Podia falar aqui de modernismo, Tropicália... A música Terras do Sem-Fim, do Fred Martins e do Roberto Bozzetti, traz o Raul Bopp, por exemplo, mas me encontrei com esse debate a partir de um pensamento que surge em outro lugar mesmo, me pensando como fruto disso. Acho que minha visão também não é exatamente o que esses movimentos trouxeram. Não quero dizer que é um trabalho de engajamento, não sei se isso de que estou falando realmente aparece ali também, enfim… Mas fiquei nessa coisa enquanto escolhia o repertório. Falando de música, sem tocar em aspectos técnicos, o violão é uma herança ibérica incontornável. Mas aí junta com tudo o que os países da África trouxeram, o tambor, o ritmo, o corpo - corpo que também está nas culturas indígenas… O lugar que tudo isso tem na história da nossa música, os significados. Esse conjunto forma a nossa cor. Fiquei me questionando também sobre em quais aspectos dessa mistura estariam nossas potencialidades, estariam caminhos para um sem-fim. Esse ponto deu o direcionamento para a ordem das canções no álbum, é critério para terminar com a Baticum de Bará. Também tem relação com o convite ao Cacique Raoni para o feat na Terras.

Music On The Road — Você conta que a ideia do álbum nasceu em 2019 e atravessou toda a pandemia. Como esse período tão particular de isolamento e reflexão impactou a gravação e, talvez, a própria alma das canções que compõem o disco?

Nós tínhamos gravação marcada para dia 16 de março em estúdio, de 2020. Foi o dia que o isolamento começou, se não me engano. Optei por suspender. Depois disso, tivemos que lidar com as limitações técnicas da pandemia. As canções feitas nessa época foram gravadas em casa pelos músicos. Fiz as vozes de várias delas na minha sala. Outra Cor, por exemplo, gravei enquanto todo mundo dormia. As primeiras pessoas que ouviram sentiram minha voz muito delicada. Imagino que tenha ficado assim porque gravei tentando não acordar ninguém (risos). Também alterei o repertório. Essa música não estava, a vi durante esse período no perfil de uma amiga e curti muito. O mesmo com Baticum de Bará. Apareceu para mim um vídeo do Simas cantando a letra, achei muito potente. Imaginei que devia gravar mais como um ponto e colocar no final. Um pouco antes desse período, eu tinha me aproximado do ifismo e da umbanda, então acho que essa canção chegou no momento certo.

Music On The Road — O álbum foi produzido por Daniel Cahon, que também é seu parceiro na composição de "Mulher Malevich". Como foi a dinâmica de trabalho com o Daniel para traduzir essa sua "leitura de Brasil" em arranjos e sonoridades?

A produção foi feita com muito diálogo, desde a escolha dos músicos até a masterização. Os arranjos também. Foram idas e vindas de propostas. Não tinha ideia exata do que eu queria no início do processo, mas o Daniel trouxe algumas ideias e ele entendeu logo que eu tinha noção clara do que não queria (risos). Fomos reformulando até chegar ao que vocês vão ver. No final de tudo, ele ficou bastante satisfeito com o resultado e eu também.

Music On The Road — Pela primeira vez o público ouvirá canções como "Mulher Malevich" e "Outra Cor". Fale um pouco sobre elas. O que inspirou "Mulher Malevich" e como surgiu a colaboração com o compositor argentino Alejo Quiroga?

Mulher Malevich é uma parceria minha com Yasmin Nigri e com Daniel Cahon. Conheci a Yasmin na graduação da UFF em filosofia. Um dia, na época que estava pensando no repertório, anos depois, ela me deu um arquivo com vários poemas e pediu para musicar. Acabei escolhendo este porque me identifiquei. A ideia era trabalhar uma forma heterogênea. Um dia, mostrei ao Daniel uma parte. Eu queria cortar uns versos. Aí ele sugeriu de tentar usar tudo e o chamei para fazer parte dos versos cortados comigo. Expliquei mais ou menos a base da ideia, enviei alguns vídeos e textos sobre Malevich, marcamos um dia e fizemos. Acaba que curti. É uma música que fala de ser mulher, da liberdade ou não de ser mulher como queremos, de julgamento, da coisa de fazermos tudo… cumprimos milhares de demandas, principalmente quando somos cuidadoras. Eu amo ser mãe, por exemplo. Mas, bem, as pessoas sempre me perguntam: nossa, como você faz tanta coisa? Não é porque quero, é porque é assim. Faço como consigo, o que dá, do jeito que dá. Nós mulheres geralmente temos que nos reinventar sempre que surge alguma grande urgência cotidiana, arrumar saídas, sabe-se lá como. Temos que fazer o impossível para que a gente não se perca totalmente da gente. Outra Cor, vi uma parte na rede. Não conhecia nada do trabalho do Alejo, mas o que ouvi da música me fez pensar na minha mãe, que perdi há mais de 10 anos, e no meu filho. Achei tudo muito delicado e fui falar com ele, pela internet também. Pedi um áudio com a canção toda e ele me mandou. Gostei. Era para piano. Descobri que ele trabalhava com bossa. Ele comentou que estava com ideia de gravar e me pediu uma voz. Gravei em casa e mandei. Mas por algum motivo o Alejo teve que parar o processo. Quando a pandemia terminou, conversei com o Daniel sobre meu desejo de incluí-la no trabalho e perguntei ao Alejo se podia usar aquela voz que estava gravada. Ele concordou e seguimos com a ideia no trabalho.

Music On The Road — Ao lado das inéditas, você traz clássicos como "Preciso aprender a ser só" e o hino "Negro Gato". Qual foi o critério para escolher essas canções? O que você busca revelar ou ressignificar ao trazê-las para o universo de "Terras do Sem-Fim"?

Elas fazem parte do meu repertório afetivo e de muita gente. Mas tem algumas canções que queria e quero muito gravar. Era o caso de Preciso aprender a ser só. No cenário da música brasileira é uma das músicas que mais amo e das que mais ouvi. E eu queria cantar do modo como a sinto. Já Negro Gato foi a primeira música que cantei em público. Por outro lado, elas também têm uma função dentro da economia do álbum e são releituras a partir da perspectiva do projeto.

Music On The Road — O release destaca a presença da percussão como um ponto fundamental na estética do trabalho, especialmente na canção "Baticum de Bará". Qual é o papel do ritmo e da herança da diáspora africana na construção da sua identidade musical e neste álbum?

Nunca parei para pensar na minha identidade musical, mas, bem, essa herança permitiu a construção do que a gente tem de mais legal na nossa música. Sobre o álbum, ele é dividido em duas partes, o início da segunda é marcado pela entrada da percussão, que vai crescendo até Baticum, que só tem o Gabriel e minha voz. A função dela é apontar para o futuro.

Music On The Road — Você escolheu fazer um pré-lançamento em formato pocket, mais intimista. Por que essa necessidade de "sentir como bate" no público antes do lançamento oficial? O que o formato voz e violão, que você diz ser uma paixão, permite expressar de forma diferente da gravação completa?

Esse foi meu primeiro show. Acabou não ficando tão pocket assim. O show tem algumas músicas que não estão no álbum. As que gravamos sempre estiveram entre pessoas conhecidas ou que estavam no trabalho. Eu estava curiosa para saber o que o público ia achar de tudo. O formato voz e violão foi pensado como o formato original do álbum, eu ia tocar e cantar, talvez ter mais um violão. Depois, por causa da escrita, tive tendinite com frequência e vi que era uma coisa ou outra para mim. Mudamos o formato e fomos na empolgação. Quando vimos tinha um mundo de instrumentos (risos). Não toco no show, mas gostei de voltar em parte à ideia inicial. O Pedro Braga é ótimo. João é muito bom. Gabriel é genial também. Tem algumas canções que pedem piano, elas têm no álbum, mas fizemos a adaptação e ficou legal. O formato permite também essa pegada mais intimista de que você falou. Acho que agora no início me agrada mais. Ela cria uma proximidade maior com o público, e isso me interessa. Acho importante nesse mundo de relações mediadas, de proximidades muitas vezes só virtuais.

Music On The Road — Você é cantora, compositora, escritora, pesquisadora, mãe e até indicada ao Prêmio Jabuti. É uma jornada impressionante. Como essas diferentes facetas da sua vida – a acadêmica e a artista – dialogam? A crítica literária influencia a forma como você interpreta uma canção?

Certamente influencia. Não sei se como interpreto, mas um pouco de como entendo música. Tenho noção de que é um modo de conceber música entre muitos. Ela é uma forma do pensamento, forma de sua exposição, como é um romance, uma peça de teatro. Isso é uma herança inegável da ideia de crítica de Walter Benjamin, um filósofo alemão importante que pesquisei há uns anos. Não pensei sempre assim. Essas formas dialogam com o tempo histórico, com a sociedade, com a subjetividade de quem toca e canta de muitos modos. Não falo de pensamento aqui como alguma coisa que tem a ver com razão, só com intelecto; tem também, mas também tem corpo. O corpo pensa. Um gesto feito propositalmente ou às vezes sem muita pretensão, pode ser pensamento, um pensamento que queremos colocar ali em cena ou um pensamento que a gente não sabia que estava pensando e, bem, se torna visível para quem está vendo a cena, mesmo pra gente depois, em uma gravação. Um gesto pode ter uma tese inteira nele. Um modo de cantar uma palavra, de impostar a voz. Enfim, tudo isso. Em todos os modos específicos de arte tem outra coisa muito importante, que é a ideia de que forma e conteúdo são indissociáveis. Quando escrevi meu ensaio sobre Saramago e Montaigne, levei isso em consideração, quando pensei em Mulher Malevich isso também estava lá. Isso está nas composições populares da música brasileira, não é nada de outro mundo. Vem se perdendo. Estou falando essas coisas todas, mas claro que não fico pensando nisso quando escuto música ou canto. Só canto. Talvez isso me direcione um pouco às vezes. Agora, quando me questiono sobre esse vínculo entre as atividades, acho que ele existe por essa via. Ah, e claro, algumas músicas que gravei têm relação com literatura e filosofia, isso não é coincidência. Na Mulher Malevich, na Terras, isso aparece na própria composição. No show, incluí Adeus, uma música inédita, e O samba me diz. São do Fred Martins com letras do Marcelo Diniz, que é professor de literatura da UFRJ. Tem também Cajuína, vinculada ao Torquato.

Music On The Road — A música entrou na sua vida através da sua família. Que memórias sonoras da sua avó e dos seus tios violonistas estão presentes, mesmo que de forma sutil, neste seu álbum de estreia?

Eles estão em tudo. Esse trabalho só existe porque eles existiram. A pessoa mais importante nisso foi minha avó materna, Jurema. Foi com ela que me interessei pela música, pelo canto. Ela era filha de portugueses, mas o pai foi para o samba, e o amor pela nossa música passou para ela, para os irmãos e chegou a mim. Além disso, ela foi a primeira Mulher Malevich que conheci.

Music On The Road — O álbum chega oficialmente no início de agosto. Depois desta noite na Audio Rebel, o que podemos esperar? Já existem planos para um show de lançamento com a formação completa, uma turnê?

Primeiro, gostaria de agradecer a todos que estiveram lá. A casa estava cheia e a noite foi incrível. Linda mesmo. Tenho a sorte de estar com músicos muito bons, não só tecnicamente. Pedro, João e Gabriel são gente muito boa. Existe confiança e conexão no trabalho, isso é meio caminho andado. Por agora, há planos de um segundo show, com a mesma formação, em breve. E algumas surpresas. Sobre a turnê, calma. Um passo de cada vez. Mas, claro, seria ótimo um pouco mais pra frente.

Music On The Road — Naiara, agradecemos profundamente pela generosidade em compartilhar seus planos e perspectivas conosco. Desejamos sucesso no lançamento oficial do álbum “Terras do Sem-Fim”. Estaremos atentos e entusiasmados para acompanhar sua trajetória artística e os futuros projetos. Até breve!