Lançar uma canção chamada “DEUS” não é um gesto neutro. No Brasil, país forjado sob as contradições entre fé, colonização e violência, o título já carrega em si a centelha do conflito. Ao escolher esse nome para o single que inaugura sua nova fase, Urias se inscreve deliberadamente na tradição de artistas que não têm medo de confrontar os mitos fundacionais da sociedade brasileira.
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Crédito: Gabriel Renne |
Em parceria com Criolo, a faixa não busca a contemplação, mas o confronto. Com versos duros como “Levaram Deus e é por isso que eu não amo nunca mais”, Urias não apenas canta: acusa. A canção expõe uma ferida histórica — o apagamento religioso e cultural dos povos africanos sequestrados e escravizados no Brasil — e a transforma em pulsação estética. A recusa ao amor aqui não é individual, mas coletiva: uma recusa ao pacto colonial que insiste em naturalizar o roubo da espiritualidade.
A PALAVRA COMO DENÚNCIA
Desde seu primeiro EP, Urias já mostrava habilidade em transformar intimidade em gesto político. Mas em “DEUS”, sua escrita dá um salto qualitativo. O texto é direto, cortante, sem espaço para metáforas suaves. O “DEUS” do título não é entidade transcendental, mas símbolo do que foi arrancado, um marcador do vazio forjado pela violência colonial.
Criolo não é apenas participação de luxo, mas costura necessária. Artista cuja trajetória se assenta sobre a denúncia das contradições sociais — do cotidiano periférico ao existencialismo urbano de “Não Existe Amor em SP” —, ele amplia a ressonância da faixa. Se Urias convoca a raiva, Criolo a ritualiza, construindo um diálogo que soa como encontro entre duas gerações da música brasileira comprometidas em devolver complexidade à palavra “memória”.
O SOM COMO CAMPO DE BATALHA
A produção de Rodrigo Gorky e Nave Beatz é outro ponto de tensão. Gorky, mais associado ao pop eletrônico, aqui se despe das fórmulas de pista para abraçar uma pesquisa quase arqueológica. Nave, forjado no rap, traz o peso do beat urbano. O resultado é uma base que não busca agradar ou entreter, mas sustentar um estado de urgência.
O sample de José Prates, retirado de gravação eternizada por Inezita Barroso em 1954, é a espinha dorsal da faixa. A escolha não é gratuita: Prates foi pioneiro em inserir ritmos afro-brasileiros em arranjos populares, tensionando a invisibilização da música negra no Brasil dos anos 1950. Retomá-lo em 2024 é gesto de reapropriação: o que antes foi folclorizado, agora é resgatado como arma política. O sample ecoa como fantasma, lembrando que a história da música brasileira é também a história de suas exclusões.
ESTÉTICA E POLÍTICA INDISSOCIÁVEIS
“DEUS” não é um single moldado para rádios — embora talvez devesse ser, caso a sociedade estivesse preparada para absorvê-lo. É peça central de um projeto que pretende se afirmar como obra conceitual. A estrutura quase cinematográfica da faixa, como define Gorky, revela uma intenção clara: Urias não está interessada em hits fáceis, mas em narrativas que provoquem desconforto.
E é justamente nesse desconforto que reside sua potência. Num mercado pop ainda frequentemente pautado pelo escapismo, Urias se arrisca a inaugurar um álbum com uma canção que expõe feridas históricas. O gesto é arriscado, mas coerente: desde “Diaba” até “HER MIND”, sua discografia sempre preferiu o enfrentamento à conciliação.
IMPACTO E PROMESSA
O lançamento de “DEUS” abre espaço para reflexões maiores. Num Brasil em que a religiosidade segue sendo instrumentalizada politicamente, uma artista trans, negra e mineira lançar uma faixa que denuncia o sequestro da fé ancestral é ato que ultrapassa a esfera musical. É político, é social, é cultural.
Urias parece consciente de que CARRANCA não será apenas mais um disco: pretende ser um rito de evocação da memória. E “DEUS” cumpre bem seu papel de introdução a essa jornada — não como canção de consumo rápido, mas como senha de acesso a um universo que exige escuta atenta e disposição para o incômodo.
A POTÊNCIA DO SINGLE
“DEUS” é canção-ritual. É menos produto de mercado e mais obra de resistência. Ao lado de Criolo, Urias dá início a uma fase em que estética e política não são camadas separadas, mas tecidos de um mesmo corpo. Se o álbum CARRANCA mantiver o nível de radicalidade anunciado por este single, teremos diante de nós não apenas um registro musical, mas um marco cultural.
PRÉ-SAVE ÁLBUM: CARRANCA
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