Setembro Verde: Doação de Órgãos como Política Estratégica de Estado

Campanha evidencia protagonismo das famílias, mas expõe necessidade de políticas públicas integradas, modernização logística e combate às desigualdades regionais no acesso a transplantes.

O Setembro Verde reafirma a doação de órgãos como uma das pautas mais sensíveis e estratégicas da saúde pública brasileira. Embora o país tenha registrado 30,3 mil transplantes em 2024, número recorde em sua história, a fila de espera continua a crescer e já soma 78 mil pacientes. A campanha deste ano, sob o lema “Doação de órgãos: precisamos falar sim”, ultrapassa o campo da conscientização popular e chama a atenção para um desafio mais amplo: transformar a doação em prática cultural consolidada e assegurar que o Sistema Nacional de Transplantes (SNT) avance como política de Estado.

Avanços recentes e consolidação do SNT

Nos últimos anos, o SNT fortaleceu sua posição como um dos sistemas mais organizados do mundo, pautado pela fila única, caráter universal e regulação nacional centralizada. Entre os avanços recentes, destacam-se:

  • 30,3 mil transplantes em 2024, consolidando dois anos consecutivos de recordes.
  • Expansão da Prova Cruzada Virtual, ferramenta digital que acelera a análise de compatibilidade entre doador e receptor.
  • Reajuste de valores de procedimentos (como córnea), reforçando a sustentabilidade financeira da rede hospitalar.
  • Fortalecimento dos bancos de tecidos e medula óssea, reduzindo a dependência de doadores internacionais.

Esses passos posicionam o Brasil como líder latino-americano e referência global em governança do sistema, mas revelam também um cenário de pressão crescente, dado o aumento da expectativa de vida e a alta incidência de doenças crônicas.

Gargalos estruturais

Apesar dos resultados, persistem quatro barreiras centrais:

  • Recusa familiar: em várias regiões, mais de 50% das famílias não autorizam a retirada de órgãos, mesmo em condições viáveis.
  • Desigualdades regionais: enquanto centros como São Paulo, Paraná e Distrito Federal apresentam taxas avançadas, Norte e Nordeste ainda enfrentam limitações de equipes e infraestrutura.
  • Deficiências logísticas: transporte ágil e seguro, especialmente para órgãos de curta viabilidade como coração e pulmão, permanece como gargalo crítico.
  • Fila crescente: a entrada de novos pacientes supera a capacidade de transplante, pressionando continuamente o sistema.

Distrito Federal como polo de referência

O Distrito Federal destaca-se como exemplo de políticas bem-sucedidas. Apenas no primeiro semestre de 2025, foram realizados 424 transplantes, alta de 3,9% em relação ao ano anterior. Em 2024, o DF quebrou recordes em transplantes de coração (35), fígado (128) e medula óssea (230), consolidando-se como polo estratégico no país.

De acordo com a Central Estadual de Transplantes do DF (CET-DF), o êxito é resultado da combinação entre investimentos em equipes multidisciplinares e campanhas regionais de diálogo social, que impactaram diretamente a redução da recusa familiar.

Cenário internacional: Brasil em perspectiva

A comparação internacional em 2025 evidencia conquistas e fragilidades do sistema brasileiro:

  • Espanha: referência mundial, atingiu 52,6 doadores falecidos por milhão de habitantes (p.m.p.) e 132,8 transplantes p.m.p., mantendo apenas cerca de 5 mil pacientes na lista de espera. O sucesso deve-se a políticas consistentes, doação após parada cardíaca e alta eficiência logística.
  • Estados Unidos: registram cerca de 48–50 doadores p.m.p., mas ainda convivem com uma lista de espera superior a 100 mil pacientes. O diferencial norte-americano é a força no modelo de doadores vivos.
  • Brasil: com aproximadamente 17–18 doadores p.m.p., apresenta índice três vezes inferior ao espanhol e mantém a maior lista de espera entre os três países comparados (78 mil pacientes).

Esses dados revelam que, embora o Brasil seja referência continental, ainda enfrenta um déficit estrutural que demanda políticas mais incisivas de equidade, logística e educação para a cultura da doação.

Diretrizes estratégicas para 2026–2030

Especialistas indicam quatro frentes prioritárias para a próxima década:

  1. Educação e cultura de doação: introdução sistemática do tema em escolas, universidades e comunidades, consolidando a doação como valor social.
  2. Capacitação hospitalar: equipes treinadas para abordagem humanizada junto às famílias, fator decisivo para reduzir recusas.
  3. Tecnologia e logística: expansão da Prova Cruzada Virtual, integração de dados em tempo real e ampliação da malha aérea emergencial para transporte de órgãos.
  4. Equidade regional: descentralização dos transplantes, com investimentos para que estados com menor estrutura tenham equipes e centros especializados.

Uma agenda de Estado

Mais do que um mês de mobilização, o Setembro Verde precisa ser consolidado como agenda pública estratégica e permanente. A sustentabilidade do SNT exige cooperação federativa, engajamento da sociedade civil, investimento contínuo em infraestrutura hospitalar e parcerias com a iniciativa privada.

Como reforça Gabriella Ribeiro Christmann, diretora da CET-DF:

“Sem autorização familiar não há doação. Mas sem estrutura pública robusta e modernizada, não há transplante.”

 

Referências principais

  1. Brasil bate recorde de transplantes em 2024
    Ministério da Saúde divulgou que o Brasil realizou mais de 30 mil transplantes de órgãos e tecidos em 2024, ultrapassando recordes anteriores. CNN Brasil+2Conasems+2

  2. Fila de espera (Brasil)
    Em 2024, cerca de 78 mil pessoas aguardavam por doações de órgãos no Brasil. Serviços e Informações do Brasil+2Conasems+2

  3. Dados por tipo de órgão no Brasil


Doadores efetivos

Em 2024, o número de doadores efetivos ultrapassou 4 mil no Brasil. Correio Braziliense+2Serviços e Informações do Brasil+2

Espanha: dados internacionais de comparação

 

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