Crítica | Pitty The Town 2025: catarse, representatividade e renovação estética do rock brasileiro

Como única mulher a se apresentar no palco The One, no domingo, 07/09, a cantora entregou não apenas um show, mas um verdadeiro manifesto cultural — reafirmando o poder de uma artista que atravessa décadas e inspira diferentes gerações.

Foto: @stephaniehahne

A GERAÇÃO MILLENNIAL E O ROCK COMO MEMÓRIA AFETIVA

A Cidade da Música, no Autódromo de Interlagos, se encheu de fãs para ver Pitty no The Town 2025. Grande parte do público é formada por aqueles que cresceram ao som do rock dos anos 2000. Para essa geração, hits como “Máscara”, “Admirável Chip Novo” e “Na Sua Estante” vão além da música: são marcos identitários, trilhas sonoras de descobertas, paixões e questionamentos que moldaram sua juventude.

Ao revisitar esse repertório, Pitty não ofereceu apenas um show: ela ativou um verdadeiro arquivo de memórias coletivas. O público respondeu como um coral uníssono, não apenas cantando, mas reencenando lembranças pessoais. Em tempos digitais, em que o consumo musical se tornou fragmentado e acelerado, essa experiência ao vivo reafirma o valor da música como cimento geracional.

A PERFORMANCE COMO MANIFESTO

Pitty sempre trabalhou a imagem como extensão da música. No The Town, isso ficou evidente: o blazer oversized com correntes, o cabelo iluminado em long bob, a maquiagem precisa — nada era casual. Era a atualização de uma estética roqueira que a acompanha desde os anos 2000, agora reposicionada em um contexto contemporâneo.

A teatralidade se fez presente nos gestos: tirar uma luva com a boca em “Teto de Vidro” não é apenas um recurso de palco, mas um ato simbólico que dialoga com sensualidade, agressividade e poder feminino. No rock, espaço tantas vezes monopolizado por homens, esses gestos assumem força política.

REPRESENTATIVIDADE EM UM PALCO MASCULINO

Ser a única mulher no palco The One em um dia dedicado ao rock não é detalhe: é uma denúncia silenciosa da desigualdade ainda presente na distribuição de espaços no gênero. Pitty, no entanto, não se colocou como exceção, mas como referência necessária. Sua fala no pré-show foi direta:

“Não é pressão extra, não. Estou na estrada faz tempo. Mas é gostoso ocupar esse espaço e pensar nele se ampliando. Acho que é por aí.”

Ocupar e ampliar: essa é a síntese. Pitty representa não apenas sua própria carreira, mas também a possibilidade de que novas gerações de mulheres no rock encontrem menos barreiras do que ela enfrentou.

O ROCK, ONTEM E HOJE

Nos anos 2000, Pitty surgiu em um momento em que o rock nacional buscava renovação após os anos 90. Sua sonoridade, marcada por guitarras afiadas e letras confessionais, unia agressividade e intimismo de forma rara. Em 2025, esse mesmo repertório ressurge sob nova luz: não é apenas a trilha de um tempo passado, mas um material vivo de resistência cultural.

Enquanto o POP global se fragmenta em playlists algorítmicas, Pitty reafirma o poder da experiência coletiva — algo que só o rock, em sua essência performática, é capaz de proporcionar.

O pedido de casamento em “Equalize”, por exemplo, é emblemático: a canção que antes falava da fusão de corpos e sentimentos tornou-se cenário de um rito social, onde amor e memória se entrelaçam diante de milhares de testemunhas.

A CATARSE COMO LINGUAGEM

O ponto alto do show foi “Na Sua Estante”, quando Pitty entregou o microfone ao público. A cantora se afastou do centro para permitir que a multidão assumisse o protagonismo. O gesto subverte a lógica da estrela isolada: em vez de ser venerada, Pitty se dissolve na multidão — e é justamente esse desaparecimento momentâneo que amplifica sua grandeza.

O encerramento com “Me Adora”, cantado no meio do público, reforçou a mesma ideia: a artista não está acima, mas junto. No rock, gesto e discurso se confundem. Pitty não afirmou que o espaço precisa ser ampliado — ela mostrou, na prática, como ampliá-lo.

ENTRE O PESSOAL E O COLETIVO

A força da apresentação esteve no cruzamento entre confissão íntima e celebração coletiva. Em canções como “SeteVidas” e “Brinquedo Torto”, Pitty mostrou que não se prende à nostalgia: continua produzindo obras que dialogam com o presente. Mas é na fusão entre passado e presente que sua relevância se revela.

Em uma noite que também contou com Bruce Dickinson e Bad Religion, ícones de uma tradição global, Pitty mostrou que o rock brasileiro tem uma voz própria: feminina, visceral e política

PITTY COMO FENÔMENO CULTURAL

Mais do que um show, o que se viu no The Town foi um ensaio vivo sobre a potência do rock como espaço de memória, resistência e reinvenção. Pitty não apenas revisitou seu legado: atualizou-o, ressignificou-o e o entregou como oferta coletiva. Ao final, ficou evidente que Pitty não pertence apenas ao passado glorioso dos anos 2000, nem se limita ao presente de 2025. Ela ocupa um espaço raro: o de artista que se tornou fenômeno cultural, cuja obra funciona tanto como espelho de uma geração quanto como caminho aberto para outras que virão. Se o rock sempre foi sobre atitude e autenticidade, Pitty lembrou ao The Town — e ao Brasil — que nenhuma dessas palavras faz sentido sem voz feminina. No The Town, Pitty mostrou que o rock brasileiro não é apenas memória: é presença viva, feminina e necessária.

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